Ainda somos humanos?

Ed Viggianitexto e foto

fotógrafo e sociólogo

18/05/2020

Naturalizar a dor é o início da desumanização. Enfrentar a ascensão do autoritarismo no Brasil significa lutar em favor do processo civilizatório, das artes, dos afetos vários e dos sonhos coletivos. A pandemia turvou o horizonte de todos nós. Podemos apenas tentar identificar os atores sociais no contexto político contemporâneo. O Brasil é um dos países com o maior desafio pela frente, além do novo coronavírus, enfrenta o fascismo jabuticaba, o bolsonarismo. É um fenômeno único no universo da política, até agora não explicável somente com as ferramentas das ciências sociais. São necessárias outras áreas: psicologia, filosofia, teologia, semiótica e matemática, e quem sabe o quê mais. Mesmo com a renúncia, ou queda, ou mesmo com a morte de Jair Bolsonaro, o bolsonarismo não morre. E não só pela continuidade através dos filhos de Jair, mas porque há uma extrema-direita organizada, sem pudor do discurso fascista, rancorosa, decidida a se manter no poder nos próximos anos e com um projeto político definido: o conflito diuturno como método, o caos e a necropolítica como meta. O bolsonarismo é o catalisador dessa perspectiva. É um braço do Estado e se fez valendo das brechas do Estado; as milícias têm capilaridade no Poder Judiciário, no Legislativo, e, especialmente, nas polícias e nas Forças Armadas, além da penetração nas quebradas, seja pela presença física paramilitar ou religiosa através das igrejas neopentecostais. O crime, as milícias e as igrejas organizam e administram vários territórios da periferia, são mediadores de conflito. Pesquisadoras dedicadas ao estudo desse novo fenômeno político, nos trazem uma realidade preocupante. https://theintercept.com/2020/04/14/coronavirus-igrejas-evangelicas/

 A adesão ao bolsofascismo pelas camadas populares aumentou após a pandemia. Pode ser que mude com as prováveis mortes nas periferias, mas a narrativa do isolamento social como interdição da sobrevivência e a vitimização da impotência política têm convencido a população das quebradas. As pesquisas de popularidade também indicam que o arrependimento do voto dado ao fascista é muito pequeno (17%, segundo Datafolha de 08/04/2020 e na pesquisa de 27/04/2020 dá 33% entre bom e ótimo para a avaliação do governo). O bolsonarismo está sedimentado na sociedade brasileira, há um fundo messiânico nessa devoção. É bom lembrar que a direita, que esteve à frente do golpe em 2016, também perdeu a eleição presidencial de 2018, além dos pleitos de 2014, 2010, 2006 e 2002, ufa! A direita  não possui capacidade de reunir forças suficientes para ocupar o poder e nem mesmo deseja mudanças. Para a direita é mais fácil aderir ao bolsonarismo do que encarar a esquerda em igualdade de condições. O fascismo não precisa de maioria, eles têm a força e a incondicional adesão conservadora.

A direita, organizada pela Rede Globo, está gestando uma alternativa. Agora parece ser Sérgio Moro, mas passa por Huck, Dória, ou um perfumado qualquer. O objetivo sempre é a manutenção da política neoliberal e dos privilégios da elite. Para tanto, o bom-mocismo como opção às políticas públicas e a filantropia no lugar da responsabilidade do Estado. O banco dono do cinema, do futebol e de quase todo o dinheiro do país apresentou o modus operandi com o programa Todos Pela Saúde. O banco citado doou dinheiro para o combate à pandemia, transferindo o valor para a sua própria fundação. De forma sutil, ou não, o símbolo da iniciativa é semelhante ao do SUS, “todos pela saúde” em substituição à saúde para todos, o filantropismo financeiro no espaço da política pública de saúde universal. Todas as noites o Jornal Nacional apresenta uma grande empresa prestando serviço ao combate do novo coronavírus. Há uma narrativa para construir a ideia do capital privado, solidário e benevolente, como o mais capacitado para dar conta das mazelas sociais, a legitimar a reprodução das mesmas mazelas. Fariam mais se pagassem os impostos devidos.

Ainda é cedo para identificar nas bases bolsonaristas o estrago pela saída de Sérgio Moro. De certo, não faltarão nessa disputa, sangue, comédia, risadas de hienas e lágrimas de ratos e répteis. A direita aposta no desgaste de Jair Bolsonaro para apresentar uma solução açucarada de exploração e manutenção de políticas neoliberais. A esquerda institucionalizada aposta no desgaste de Jair Bolsonaro pela falta de um projeto, ou de forma mínima, outra narrativa. Após quatro anos fora do governo, o PT e qualquer outra força da esquerda não conseguiu apresentar um projeto consistente, ou uma ideia clara de alternativa de poder, no máximo, notas de repúdio. Os partidos de esquerda não dão conta das demandas dos movimentos sociais. Há inúmeros coletivos, organizações de bairro, movimentos de minorias, questões de gênero, quilombolas, indígenas, artistas, ocupações rurais e urbanas, assentamentos organizados e ações solidárias que são desenvolvidas, entretanto, são forças dispersas. A esquerda institucionalizada em partidos se tornou um corpo burocrático e distante da base. Perdeu a capacidade de diálogo e penetração nas quebradas, espaço ocupado, de forma comum, pelo crime organizado e pela igreja evangélica.

A demonização da política e, em especial, do pensamento de esquerda, a desvalorização da cultura, das ciências e da educação, levaram o país a embarcar no obscurantismo e interdição do debate ou qualquer diálogo republicano. E a esquerda tradicional nunca foi uma excelência na comunicação, e nos tempos de verdades fantasiosas e redes sociais patina com o novo léxico global, enquanto a extrema-direita investe pesado há muito tempo, vide a mamadeira de piroca. A crise institucional criada a partir do golpe de 2016 perdura, as eleições de 2018 foram uma fraude, a Vaza Jato detonou a narrativa da Lava Jato e da mídia tradicional. O Executivo não tem noção da liturgia e responsabilidade do cargo, aproveita a pandemia para transferir renda para a elite financeira, liberar a grilagem de terra, destruir direitos dos índios e da classe trabalhadora. O Judiciário sempre viveu em um universo à parte, numa ilha de Caras; os juízes são donos de uma gramática intraduzível, seguem o rito da aparência democrática, mas defendem os privilégios dos seus; o Centrão cuida da domesticação do Legislativo e os militares nunca foram tão felizes e bem empregados no governo.

O envelhecimento da esquerda é um fato e o desencanto com a política também. Sem o fôlego da juventude e seu conhecimento das novas tecnologias, a esquerda vai permanecer desconectada da nova realidade do mundo do trabalho e do que hoje provoca corações e mentes; não conseguirá retomar o espaço perdido na base. Na falta de um partido condutor de desejos é necessário criar um movimento que agrupe as diferentes forças da esquerda na direção da tomada de poder, uma frente formada a partir das demandas sociais com coragem para o enfrentamento da crise institucional. Postergar as lutas internas do campo da esquerda quando da retomada do processo civilizatório, ou em outros termos: menos vaidade para enfrentar o inimigo comum. Não é pouca coisa que está em jogo, literalmente é o jogo da vida. O capitalismo mostrou a sua fragilidade, mas demonstra claramente a volúpia da acumulação e que não dará trégua, com ou sem vírus. É o momento do enfrentamento, vale qualquer gesto, nem que seja gritar “fora bolsonaro” todas as noites para alimentar o fogo.

Quem recusa a criar um pacto pela vida são os amigos do Paulo Guedes, o mercado e seus parasitas. Sem nenhum exagero, o cenário após a pandemia é de desemprego, aprofundamento das políticas neoliberais e de controle social. A História nos ensinou: quando a esquerda está dividida e a direita não consegue impor a sua hegemonia, é a extrema-direita que ocupa o poder independente do método. Só mesmo uma concentração de forças democráticas para barrar a barbárie, lutar por eleições gerais livres e pela imediata distribuição de renda e terra para minimizar os efeitos da crise. Esse pode ser o mote para iniciar uma frente. É o momento de escolher como queremos ser lembrados, não podemos vacilar. Do outro lado da margem estão uns caras que parecem humanos, mas deve ser engano nosso. É algo sem definição, olhamos para eles com o nosso instrumental, com o nosso conhecimento e sensibilidade, isso não basta. Há uma fenda no poder, os fascistas estão com o fuzil M-16 nos dentes construindo uma chance. Não estamos enfrentando humanos, o semblante deles é de ódio gratuito. O deboche pela dor dos outros os colocam em outra categoria, embora desconhecida, nociva como um coronavírus.  

3 comentários em “Ainda somos humanos?

  1. Que texto maravilhoso, difícil encontrar uma descrição tão próxima da realidade. Acho que deveria encaminhar esse espelho desse momento histórico à todos os lideres dos partidos de esquerda pra que façam uma reflexão e se unam com inteligência para mudança desse status quo.

    Curtir

Deixe um comentário

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora