O imbróglio Cinemateca: desinformação e batalha pela preservação da cultura

Por Luiza Lusvarghi_
Foto de Sylvia Masini
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Desde 2013 a Cinemateca vive uma das piores crises da sua história e o final de abril trouxe mais tempestades para esse órgão de preservação da memória do cinema e do audiovisual nacional. Em janeiro, uma enchente danificou 113 mil DVDs que estavam arquivados no galpão da entidade na Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo. Em abril a atriz Regina Duarte foi nomeada para dirigir a Cinemateca Brasileira, após dois meses como secretária da Cultura do governo Bolsonaro e ter saído sofrendo pesadas críticas de artistas por causa da desastrosa entrevista à CNN. Dois dias depois de sua chegada, o governo afirmou que fecharia a Cinemateca, mas mudou o discurso e disse que estava se referindo ao rompimento do contrato com a Associação de Comunicação Educativa Roquete Pinto (Acerp), que administra a instituição desde 2018.

Ao longo de sua história, a instituição sofreu quatro incêndios, sendo o último em 2016.

Em março daquele ano foi assinada uma parceria entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação, acertando que a Cinemateca passava a ser administrada integralmente pela Acerp por um período de três anos, portanto, até 2021. Mas a suspensão do contrato original do Ministério da Educação com a Acerp – que já havia sido anunciada em dezembro de 2019 pelo ministro Abraham Weintraub e reiterada no anúncio feito em abril – causou furor, levando pessoas ligadas à instituição a divulgarem uma carta, em que afirmam que a Cinemateca, em 2020, “não recebeu ainda nenhuma parcela do orçamento anual, cujo montante é da ordem de R$ 12 milhões”.

O documento, distribuído pelas redes e para a imprensa, foi assinado por Carlos Augusto Calil, membro da Fundação Cinemateca e professor da ECA/USP; pelo diretor, roteirista e pesquisador Rubens Rewald e outros (leia aqui o manifesto). No dia 4 de junho foi realizada uma manifestação, a SOS Cinemateca, convocada pela Apaci (Associação Paulista de Cineastas), no Largo Raul Cardoso, diante do prédio da Cinemateca, apoiado por diversas entidades representativas do setor, que culminou com a leitura do manifesto Cinemateca Pede Socorro .

Cinemateca sob intervenção

A Cinemateca foi fundada em 1956, mas somente em 1961 se torna uma fundação. Sofreu intervenção em 2013 acusada de má administração, ainda durante a permanência de Marta Suplicy no MinC. Em 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff e a posse de Michel Temer como presidente interino, o MinC foi extinto e reincorporado ao Ministério da Educação – ao qual pertenceu entre 1953 e 1985, quando surgiu o Ministério da Educação e da Cultura – MEC. Após a eleição de Bolsonaro, o MinC foi incorporado ao Ministério da Cidadania, que abrigava ainda Esportes, Desenvolvimento Social. Agora, a Secretaria Especial de Cultura foi parar no Ministério do Turismo.

O primeiro secretário deste governo foi Roberto Alvim, demitido sob acusação de incitar ao nazismo, por reproduzir em vídeo um discurso do nazista Joseph Goebbels.

Juca Ferreira foi ministro da Cultura em duas ocasiões: de 2008 a 2010 – governo Lula – e entre 2015 e 2016 – governo Dilma. Era secretário municipal da Cultura de São Paulo, na gestão de Fernando Haddad, entre 2013 e 2015, quando denúncias de má administração da Cinemateca vieram a público. Ferreira conta que se ofereceu para testemunhar em favor dos acusados, em cuja idoneidade confiava plenamente. O processo paralisou completamente a entidade.

Ferreira lembra que a comissão de juízes que integrou o processo, questionou a compra de acervos, como o do Canal 100 – cinejornal criado em 1957 por Carlos Niemeyer, que antecedia a exibição de filmes nos cinemas – e o de Glauber Rocha, comprado da família do cineasta em 2010, por R$ 3 mi, quando Ferreira era ainda ministro.

“O uso da grande angular para cobrir uma partida de futebol revolucionou a cobertura”, conta Ferreira, que considera os cinejornais e o Canal 100 em particular, extremamente relevantes para a memória da cultura brasileira. Sobre a obra de Glauber, Ferreira lembra que o filme O Leão de Sete Cabeças (1970), dirigido por ele fora do Brasil, foi o primeiro a ser restaurado. A obra era julgada perdida. “Fizemos um anúncio na Europa e localizamos uma cópia com um colecionador que tinha todos os filmes de Glauber e gentilmente nos cedeu a sua para reprodução”. O filme era inédito no Brasil e foi exibido no Espaço Itaú em Salvador. Todo o acervo – que estava sob os cuidados da família de Rocha na instituição Tempo Glauber, no Rio de Janeiro – é composto de 22 filmes, além de 80 mil documentos incluindo correspondência pessoal do diretor, roteiros, peças, poemas e projetos de livros, muitos inéditos.

Ferreira acredita que a contratação da Acerp contribuiu para agilizar o espaço da Cinemateca, que passou a administrar suas verbas sem ter de depender de editais, o que burocratiza o cotidiano de instituições. O problema é que a Cinemateca depende das verbas governamentais, o que levou o boletim da empresa de dados Filme B afirmar que a “nomeação” de Regina teria sido importante para que a Cinemateca Brasileira “tenha outra qualificação dentro do quadro burocrático, facilitando que esta importante entidade do cinema possa receber verbas para seu pleno funcionamento”.

Não parece ser essa a opinião dos membros da Acerp e nem mesmo da Fundação Cinemateca. “Regina Duarte saiu completamente desprestigiada do governo e para salvar as aparências precisava de um prêmio de consolação. Por evidente desinformação, escolheram a Cinemateca por ela se situar em São Paulo. Mas a Cinemateca Brasileira não é uma sinecura do governo federal e, portanto, a estratégia fracassou. O episódio desastrado, no entanto, serviu para chamar a atenção sobre a crise da instituição que vem se arrastando desde 2013 e chegou agora a um ponto extremo, de ameaça à sua própria sobrevivência”, pondera Carlos Augusto Calil.

Documento pede transparência e compromisso

O atual contrato de administração da Cinemateca, vigente até 2021, transferiu para a Acerp a gestão integral dos núcleos de Preservação, Documentação e Pesquisa, Difusão, Administração e Tecnologia da Informação da Cinemateca. Se tornou, assim, a primeira instituição cultural federal administrada por uma Organização Social (OS). A empresa já vinha trabalhando com a Cinemateca desde dezembro de 2015, quando executou dois contratos de prestação de serviços com o antigo MinC, fundamentais para a continuidade dos trabalhos nas diferentes áreas técnicas da Cinemateca Brasileira.

Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, a Cinemateca vinha novamente sendo alvo de ataques, desta vez por militares e políticos preocupados com o “marxismo cultural”, conceito cunhado pelo ideólogo Olavo de Carvalho. Nas comemorações da Semana da Pátria em 2019, o deputado estadual Castello Branco (PSL), chegou a gravar um vídeo para anunciar a mostra de filmes militares, que constituem parte do acervo histórico, ladeado pelo atual superintendente do órgão, Roberto Simões Barbeiro, pelo assessor especial Rodrigo Morais e Lamartine Holanda, coronel reformado do Exército. Barbeiro acumulava até ano passado a função de assessor parlamentar de Edna Macedo, do PRB, irmã de Edir Macedo, e a de assessor da Acerp. Sob denúncias, foi exonerado da função de parlamentar. Na prática, é ele quem comanda a instituição desde então.

A contratação da Acerp, que se seguiu à intervenção de 2013, também é objeto de controvérsias. “Há quem defenda a administração pública conduzida por Organizações Sociais e há quem prefira a administração direta. Em São Paulo, no governo do Estado, todas as instituições são administradas por OS. No caso da Cinemateca em 2018, quando a Acerp foi contratada, o governo federal não tinha opção, só podia atribuir a gestão da Cinemateca a uma OS, pois não promovera concurso público e ela estava destituída de quadros funcionais. Ela então foi retirada do organograma do governo federal e seus três cargos em comissão foram transferidos a outros órgãos.

“O governo pensou que a Cinemateca fosse um órgão regular que tivesse um cargo de direção e assessoramento para seu diretor. Mas esse cargo não existe desde 2018. Por esse motivo Regina Duarte não pode ser nomeada para a Cinemateca”.

Carlos Alberto Calil

A Cinemateca hoje não dispõe mais nem de cargos públicos, nem de estrutura administrativa”, justifica Carlos Augusto Calil. Na escritura de incorporação da Fundação Cinemateca Brasileira (privada) à Fundação Nacional pró-Memória (subordinada ao MEC, depois substituída pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional), datada de 1984, há algumas salvaguardas referentes à preservação da autonomia da Cinemateca assegurada pelo seu Conselho Consultivo. O extinto Ministério da Cultura, entretanto, não renovou os mandatos dos conselheiros em 2013, retirando unilateralmente a autonomia da Cinemateca.

Na crise atual que demanda solução imediata não existe alternativa senão manter provisoriamente o contrato com a Acerp, acredita Calil, mesmo reconhecendo que ela não demonstrou competência para conduzir uma entidade tão especializada como a Cinemateca. Para manter os salários em dia e saldar as dívidas não existe alternativa à mão. “A Cinemateca é como um avião no ar sem combustível. Precisa de abastecimento em pleno vôo”, afirma. “O governo pensou que a Cinemateca fosse um órgão regular que tivesse um cargo de direção e assessoramento para seu diretor. Mas esse cargo não mais existe desde 2018 e por esse motivo Regina Duarte não pode ser nomeada para a Cinemateca. O governo poderia solicitar que a Acerp a contratasse no regime CLT e a incumbisse de dirigir a Cinemateca, mas tal atitude é contestável e, além do mais, o governo teria de repassar recursos à OS, o que se recusa a fazer”, conclui.
De fato, Olga Futemma foi diretora da Cinemateca até 2018, ocupando um modesto cargo em comissão, passando então, por livre decisão sua, a ser contratada da Acerp.


Luiza Lusvarghi é jornalista, pesquisadora de cinema e audiovisual, com doutorado pela ECA/USP. É coorganizadora do livro Mulheres Atrás das Câmeras, integrante da Abraccine e dos coletivos Elviras e Manifesta.

Mais links sobre o assunto:
https://jornalistaslivres.org/s-o-s-cinemateca-um-grito-contra-o-descaso/

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